Admirador de Trump e Bolsonaro, economista vira fenômeno eleitoral na Argentina

Entre suas propostas está “dinamitar” o Banco Central, liberar a posse de armas, revogar a legalização do aborto e, principalmente, “derrubar o modelo defendido por esta casta política, que a única coisa que conseguiu foi transformar o país mais rico do mundo em um dos mais pobres”.

Os impostos são um resquício da escravidão e o liberalismo foi criado para libertar as pessoas da opressão dos monarcas, que, neste caso, seria o Estado. A polêmica frase é um dos motes de campanha do economista Javier Milei, fenômeno eleitoral do momento na Argentina. Após as Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso), realizadas no último domingo para definir os candidatos às eleições legislativas de 14 de novembro, esse representante da extrema direita tornou-se líder da terceira força política de Buenos Aires, com um surpreendente desempenho em todos os bairros da cidade, incluindo os mais humildes.

Sem experiência política, o admirador de Jair Bolsonaro e Donald Trump obteve 13,7% dos votos da capital pelo partido A Liberdade Avança — atrás apenas da aliança governista Frente de Todos (24,7%) e da opositora Juntos pela Mudança (48,2%). Aos 50 anos, a figura midiática —ele é convidado frequente dos principais canais de TV, teve programas de rádio e estrelou peças de teatro — tem certeza de que será eleito deputado no pleito que renovará metade da Câmara e um terço do Senado em novembro.

Entre suas propostas está “dinamitar” o Banco Central, liberar a posse de armas, revogar a legalização do aborto e, principalmente, “derrubar o modelo defendido por esta casta política, que a única coisa que conseguiu foi transformar o país mais rico do mundo em um dos mais pobres”.

Com seu estilo irreverente, Milei desafia os partidos tradicionais e tornou-se uma ameaça —ainda sem projeção nacional — ao bipartidarismo argentino. É um fenômeno urbano não restrito às classes mais altas portenhas, já que também colheu apoios em bairros com a miséria em expansão, entre eles La Boca e Mataderos. Entre os jovens, tornou-se cult. Nas redes sociais, há vídeos em que aparece como um Deus que enfrenta demônios rodeado de anjos e, em sua cruzada contra a casta política inimiga, caminha ao lado de Trump e Bolsonaro.

Realidade e ficção

A explosão do fenômeno coincidiu com o sucesso da série “Vosso Reino” (atualmente na plataforma Netflix), na qual a escritora Claudia Piñeiro e o diretor Marcelo Piñeyro, atentos para o avanço de uma direita populista extremista em países como Brasil, EUA, Hungria e Polônia, criaram o personagem de um pastor evangélico que se candidata à Presidência argentina.

Seu destino foi traçado após o assassinato do companheiro de chapa por uma facada. Ao GLOBO, Piñeiro garantiu que o roteiro foi escrito antes do ataque a Bolsonaro, e que nunca imaginou que a realidade argentina ficaria tão próxima da ficção.

— Milei funciona como um pastor, uma figura messiânica — disse a escritora. — Existe uma tendência a apelar ao lado emocional dos eleitores, e Milei faz parte desse movimento global de direita, que constrói uma conexão muito forte com seus seguidores — afirmou.

A cada ato público ou entrevista que dá na televisão, o economista faz uma espécie de show, com direito a choro, raiva e um discurso inflamado contra o sistema político e o Estado, buscando, em suas palavras, “despertar leões” na sociedade argentina. O partido fundado por Milei se define como libertário, apropriando-se, segundo o historiador Felipe Pigna, de um termo historicamente associado a movimentos anarquistas nas primeiras décadas do século XX na Argentina. Ele é a versão local do partido espanhol Vox, do bolsonarismo e do trumpismo. E, justamente por isso, vem sendo levado a sério.

— Não subestimo Milei nem um pouco. Ele tem carisma, fala com total impunidade sobre propostas ousadas, para uma plateia que está farta do sistema político atual — disse o historiador.

Unidas, as opções de direita obtiveram cerca de 60% dos votos na capital argentina. A esquerda fez uma eleição razoável, sobretudo em províncias do Norte argentino, mas seu desempenho ficou muito aquém dos candidatos de direita. O voto castigo ao governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner foi amplamente captado pela aliança Juntos pela Mudança (que tem uma ala de direita cada vez mais forte) e pelo partido de Milei.

Em novembro, também deverá ser eleita deputada a segunda da lista de Milei, Victoria Villaruel, presidente do Centro de Estudos Legais sobre Terrorismo e suas Vítimas, que em diversas vezes negou o terrorismo de Estado durante a última ditadura militar (1976-1983). Também há chances de o partido eleger outros dois deputados.

A pauta do movimento libertário argentino é diversa: critica a legalização do aborto e defende a liberalização do consumo de drogas e posse de armas. Como diz Diego Reynoso, da Universidade de San Andrés, “não está claro se todos entendem o que defendem. Para alguns, a liberdade é econômica; para outros, é acabar com a esquerda”.

— Até onde isso vai chegar? Não sabemos. Fenômenos como Jean-Marie Le Pen, na França, nos ensinaram que não podemos tratar esses políticos como maluquinhos. Milei ativou um mecanismo de rebeldia social contra a autoridade — disse.

Essa rebeldia chegou em plena pandemia e com a sociedade indignada pelas medidas de quarentena, que não evitaram mais de 113 mil mortes por Covid-19. O fenômeno argentino foi celebrado pelo deputado Eduardo Bolsonaro. Ele já realizou uma live com o candidato libertário, que defende que deputados e senadores não recebam salários e promete não contratar assessores quando chegar ao Congresso. Como conclui Piñeiro, “muito do que Milei diz é inviável, mas ele sabe interpretar o momento de raiva contra o sistema político”.

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