CPI da Covid aposta em dados para driblar depoentes e apontar mentiras

Abastecidos com um volume cada vez maior de documentos que não param de chegar, senadores oposicionistas e independentes da CPI da Covid têm apostado no uso dos dados entregues à comissão para driblar depoentes e até mesmo apontar mentiras.

Ao longo desses quase quatro meses da Comissão Parlamentar de Inquérito, os senadores aprovaram pedidos de informação a órgãos públicos e empresas privadas, além de quebras de sigilo de suspeitos de irregularidades, por exemplo.

Mas foi a partir do recesso parlamentar, no final de julho, que os senadores realmente tiveram tempo de avançar na análise do material e explorar provas e evidências reunidas de forma significativa.

Essa pesquisa mais cuidadosa agora vem rendendo frutos nos depoimentos da CPI. Nos mais recentes, senadores conseguiram pressionar depoentes considerados “rebeldes”, rebater argumentos e apontar mentiras com base em documentos —nem todos coletados necessariamente por meio da requisição da CPI, mas por outras vias legais também, como consultas públicas na Justiça.

Documentos da Precisa

O dono da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, na última quinta-feira (19), resistiu em falar, amparado em habeas corpus concedido pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Porém, em pelo menos três vezes em que respondeu aos senadores, teve a argumentação rebatida com dados. No final da sessão, o empresário se retratou após ameaça de prisão por falso testemunho.

O contrato para a compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde, intermediado pela Precisa, a um custo de R$ 1,6 bilhão, está no centro das investigações da CPI. O contrato foi suspenso devido a uma série de suspeitas de irregularidades.

Ao ser questionado sobre sua participação num contrato de locação de um imóvel ao qual Marcos Tolentino, apontado como o verdadeiro proprietário da FIB Bank, tinha livre acesso, Maximiano disse que era apenas fiador.

No entanto, documentos obtidos pela CPI mostram que ele, na verdade, era locatário. A FIB não é um banco deu garantias frágeis e suspeitas para o contrato da Covaxin e, ao contrário do que o nome pressupõe, não é um banco.

E, embora Maximiano tenha dito não manter “relação continuada” com Tolentino, há declaração do empresário afirmando que uma das poucas pessoas autorizadas a entrar no imóvel era justamente Tolentino, segundo o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

Sob sugestão de prisão por Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o empresário se retratou e disse que se confundiu.

A investigação não decorre somente de depoimentos. Investigação é análise, sobretudo, de documentos. Talvez, às vezes, seja melhor realmente a utilização do direito ao silêncio, porque um deslize nos leva aqui a informações que nós já temos. Nós tínhamos aqui o contrato de locação que contradiz exatamente o que o senhor depoente estava aqui apresentando.”

Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI da Covid

Em outro momento, Randolfe apontou que Maximiano teria mentido ao dizer não ter representado a ABCVac (Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas) em viagem à Índia no início do ano. Isso porque o documento oficial do Ministério das Relações Exteriores afirmou que Maximiano representava a delegação em reunião da ABCVac na Embaixada do Brasil em Nova Déli.

Já o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou que a comissão tem posse de documento que prova que a Precisa recebeu cerca de R$ 640 mil da empresa Xis Internet Fibra neste ano, ao contrário do que havia dito Maximiano.

Maximiano tinha negado ter recebido dinheiro da empresa ao explicar que manteve reunião com o presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Gustavo Montezano, para discutir projeto de internet da Xis. Segundo Renan, o encontro foi intermediado pelo senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente da República.

Apesar da contradição, Renan não pediu providências adicionais. O único realmente preso por mentir foi o ex-diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Dias —solto no mesmo dia após pagamento de R$ 1,1 mil de fiança. A Justiça Federal de Brasília anulou a prisão de Dias e determinou a restituição da fiança.

Erros em contratos

Uma das senadoras que mais têm se destacado na análise de dados é Simone Tebet (MDB-MS), líder da bancada feminina na Casa. Ela foi responsável por apresentar de forma detalhada uma série de inconsistências em documentos entregues ao Ministério da Saúde no caso Covaxin. Maximiano acabou culpando uma outra intermediária no processo, a Envixia, empresa dos Emirados Árabes, pelos erros, sem convencer os senadores.

Diante do advogado da Precisa na CPI, Túlio Silveira, a senadora também desmentiu defesa dele de que não teria participado das negociações para a Covaxin por meio de troca de emails recebidos pela comissão e de que seria mero advogado da Precisa que prestava somente assessoria jurídica. Segundo os senadores, Silveira pressionou o ministério a apressar a assinatura do contrato como funcionário da Precisa.

Com mestrado em Direito do Estado, Simone afirma conseguir reagir rapidamente às declarações dos depoentes, “pegá-los na mentira”, por ter estudado o caso Covaxin a fundo no recesso e ter “tudo na memória”.

Antes de se calar diante da maioria das perguntas, também protegido por um habeas corpus, Silveira disse que atuava em favor da Precisa Medicamentos na condição de “advogado [contratado] da companhia”, mas que não seria funcionário da empresa, isto é, com vínculo empregatício.

Com base em ata de 20 de novembro de 2020 do Ministério da Saúde, Randolfe perguntou, então, o motivo de Silveira ter sido apresentado como responsável por parcerias internacionais e compliance da Precisa. Já em audiência pública do Senado em 23 de março deste ano, o advogado foi apresentado como gerente de contratos da companhia.

Silveira argumentou ter havido um engano em ambas as situações.

Investigação baseada em prova técnica

Delegado da Polícia Civil, o senador Alessandro Vieira afirma que toda boa investigação é baseada em prova técnica. Na CPI, as ferramentas disponíveis são menores do que numa apuração policial, mas, ainda assim, é mais importante ter em mãos documentos e quebras de sigilo do que um depoimento.

Não é razoável imaginar que alguém vai sentar na cadeira e confessar simplesmente que cometeu uma série de crimes. Então, a parte documental é muito importante.”
Alessandro Vieira (Cidadania-SE), membro da CPI

Na avaliação do senador, as principais vitórias da CPI por meio da documentação até o momento foram “comprovar a falsidade” de uma série de papéis demonstrando que o contrato da Covaxin não poderia ter sido firmado, e desvendar a teia de relacionamentos entre militares da reserva e intermediários com o poder público.

O relatório de Renan deverá se aprofundar em irregularidades a partir das quebras de sigilos e relatórios do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Dados também são usados de forma distorcida

Tornou-se fato comum durante as oitivas da CPI a reação indignada de senadores da oposição e da ala independente a notícias falsas e informações distorcidas que costumam basear discursos em defesa da cloroquina/hidroxicloroquina, ivermectina e outros medicamentos sem eficácia no tratamento da covid-19.

Uma das cenas mais recorrentes envolve o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS). Desde o começo da comissão, ele tem se notabilizado pela entusiasmada argumentação em favor de remédios e substâncias que, de acordo com a ciência, nada servem em relação aos efeitos da doença.

Colegas como Alessandro Vieira, Randolfe Rodrigues, Eliziane Gama (Cidadania-MA) e até o próprio presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM), já travaram discussões acalorados com o parlamentar gaúcho —contra quem há uma representação no Conselho de Ética por disseminação de fake news.

Dos embates já surgiram provocações de parte a parte (entre defensores e críticos do governo) e memes nas redes sociais. Um dos conteúdos virais foi menção de Heinze a suposta “atriz pornô” que seria sócia de uma empresa, com sede no exterior, com dados científicos suspeitos a respeito da ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina.

Isso porque havia uma corrente de WhatsApp que utilizava a imagem da ex-atriz pornô de origem libanesa Mia Khalifa. A montagem falava em “médica infectologista” brasileira, chamada Marcela Pereira, descrita como “prodígio”, que estaria sofrendo represálias por conduzir um estudo promissor sobre a cloroquina. Tal fake news foi imediatamente associada às declarações de Heinze na CPI, o que gerou brincadeiras entre os colegas.

“Pessoal, estava refletindo aqui. Se continuar como está, considero inevitável ter que convocar a Mia Khalifa para a CPI”, postou Randolfe, em tom de ironia.

A notícia falsa, com uso indevido da imagem de Mia, foi disseminada por sites de extrema-direita nos primeiros meses de pandemia.

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