O mito do “pacifismo histórico” do Japão está deixando de existir

Da geopolítica da Hello Kitty ao clichê do guerreiro que rejeita a guerra: Japão nunca deixou de ser um dos países que mais gastam com armas no planeta e está prestes a assumir a terceira posição

No último dia 18, um dia antes da cúpula do G7 realizada em Hiroshima, os chefes de Estado do Japão e do Reino Unido assinaram o que foi considerado um “acordo histórico” pelo governo britânico. O acordo tratava de defesa, comércio e investimento, colaboração em ciência e tecnologia.

O acordo firmou a duplicação do número de tropas do Reino Unido em exercícios conjuntos ao Japão, além de implantar um grupo de ataque de porta-aviões britânicos no oceano indo-pacífico em 2025. De forma resumida, os dois países concordaram em aumentar o intercâmbio técnico, a cooperação militar e o uso de bases japonesas pelo Reino Unido.

Com uma perspectiva de justificar o aumento da presença britânica nas águas longínquas do Japão, a BBC Brasil publicou um artigo de Tessa Wong e Eri Okazaki, cujo título foi traduzido para “Japão vê seu pacifismo histórico em xeque diante de avanços de China e Coreia do Norte”. O texto, cuja narrativa é reproduzida à exaustão no Brasil em outros portais, começa com uma leitura em terceira pessoa sobre os sobreviventes da bomba nuclear que “escureceu o pôr-do-sol” de Hiroshima em 6 de agosto de 1945. Desde então, o horror nuclear teria feito o Japão adotar uma política pacifista de recusa da guerra como um direito soberano, celebrada pelo artigo 9 da constituição do pós-guerra.

Hoje, “diante de desafios sem precedentes”, tais como os “movimentos cada vez mais ousados” da China contra Taiwan, a “ameaça existencial perene” da “imprevisível” Coreia do Norte e, mais recentemente, a “invasão russa” à Ucrânia com a “possibilidade de que Moscou use armas nucleares”, o Japão se vê acuado e não haveria outra solução que não uma nova militarização.

Essa militarização, no entanto, seria uma resposta do governo japonês ao clamor popular: a “senhora Takana”, de Hiroshima, se diz horrorizada com os mísseis norte-coreanos. Essa não seria uma opinião isolada, uma vez que 41% dos japoneses em 2022 dizem querer “as forças de autodefesa maiores e mais fortes” em comparação com 29% em 2018. Metade dos entrevistados, segundo a BBC, também desejariam uma mudança constitucional para permitir a criação de um exército e 90% apoiariam a aliança de segurança Japão-EUA.

Essa pesquisa contrasta com outra conduzida pelo Asahi Shimbun, um dos mais respeitados jornais japoneses. Divulgada no último dia primeiro de maio, a pesquisa indica que 80% dos japoneses estão preocupados com a possibilidade do Japão seguir os EUA em uma guerra por Taiwan. Os índices de pessoas muito preocupadas com essa possibilidade são ainda maiores em Kyushu e Okinawa, regiões ao sul do território japonês e mais próximas da China. Okinawa, especificamente, abriga o maior contingente estadunidense fora dos EUA.

A pesquisa vai além: 56% acreditam que o Japão não deveria participar diretamente do conflito, e 27% acreditam que o Japão não deveriam se envolver de forma alguma nas empreitadas militares dos EUA. Perguntados sobre as disputas entre EUA e China, 70% dos entrevistados disseram que o Japão deveria melhorar suas relações com a China, e 26% são a favor do Japão assumir uma postura defensiva mais enfática.

Pessoas se reúnem no Parque de Prevenção de Desastres Tóquio Rinkai em Tóquio, Japão, no dia 3 de maio de 2023. Cerca de 25.000 japoneses se reuniram na quarta-feira em Tóquio, pedindo paz e proteção da Constituição do Japão, incluindo o Artigo 9, que renuncia à guerra, quando o país marcou o 76º aniversário de sua Constituição pacifista do pós-guerra. (Foto: Xinhua/Zhang Xiaoyu)

O mito do pacifismo japonês

Ao final da Segunda Guerra, em 2 de setembro de 1945, atingido por duas bombas atômicas e vendo sua armada despedaçada, Hirohito acatou a submissão aos EUA e assinou a rendição. Em novembro do ano seguinte, seria promulgada a nova constituição do Japão, que entraria em vigor em março de 1947. Escrita sob a supervisão do General Douglas McArthur e imposta pelos EUA, a constituição limita os poderes da casa imperial, cria mecanismos para que o imperador não seja condenado pelos horrores da campanha expansionista japonesa na Ásia e obriga o Japão a renunciar a guerra como direito soberano.

A armada japonesa, antes gloriosa e responsável por massacres, estupros e atrocidades sem precedentes na história humana, estaria desmantelada. De toda forma, a noção desse novo Estado japonês pacifista, recomposto pela mesma burocracia imperial de outrora, é uma ilusão mistificada pelo componente constitucional. Na prática, menos de cinco anos depois da adoção da constituição pacifista, o Japão foi envolvido indiretamente na invasão estadunidense à península coreana na Guerra da Coreia, servindo como enclave militar e fornecendo apoio logístico e financeiro aos esforços de guerra. No mesmo ano de 1950, os EUA demandaram uma remilitarização do Japão para compensar as forças que tinham sido despachadas para o conflito. Em 1954, seriam criadas as forças de autodefesa do Japão.

Um artigo do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) intitulado “The proposed hike in Japan’s military expenditure” demonstra as três fases do orçamento militar do Japão no pós-guerra. A primeira fase foi uma queda drástica do gasto em relação ao PIB, durante a recuperação econômica do país. A seguir, a partir da década de 60, o Japão passou a ocupar o clube seleto de maiores gastos militares do mundo.

Ao final da década de 90, o Japão chegou a ocupar o segundo maior orçamento militar do planeta, atrás somente dos EUA. Essa ascensão militar só foi interrompida com a estagnação econômica do Japão, conhecida como “a década perdida”, entre 2002 e 2017, não tendo, no entanto, visto uma redução significativa no seu gasto absoluto ou em relação ao PIB.

O não-reconhecimento do Japão como uma potência militar é parte fundamental da mística em torno do suposto pacifismo japonês, ao ponto do governo japonês tentar censurar a capa da revista Times neste mês de maio.

Capa da revista Times, de 22-29 de maio de 2023, trás Fumio Kishida como alguém que optou por transformar o Japão em uma potência militar.

A chamada da capa da revista diz: “A escolha do Japão: Primeiro ministro Fumio Kishida quer abandonar décadas de pacifismo e tornar seu país uma verdadeira potência militar”. Incomodado, o Ministério das Relações Exteriores do Japão veio a público dizer que essa chamada não refletia o “tom geral” da entrevista concedida à revista.

Em 2022, Fumio Kishida anunciou um incremento de 26,3% no orçamento militar de 2023, saltando para US$52 bilhões. Nos próximos cinco anos, Kishida prometeu US$330 bilhões para gastos militares. Em 2027, o orçamento chegará a US$66 bilhões, o que representa 2% do PIB japonês em 2023. Ao nosso ver, é adequada a designação da revista a um país que almeja se tornar o terceiro maior gasto militar do planeta.

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A blindagem ocidental

Apesar da escalada militar do Japão só ter tomado os noticiários da grande mídia hoje, esse não é um processo recente. Se na década de 1950 o Japão se remilitarizou a pedido dos EUA, hoje o processo é semelhante. Uma pesquisa do think tank estadunidense Rand Corporation, encomendada pelo Pentágono e que seria divulgada em 2022, recomendou que os EUA deveriam “encorajar o Japão a desenvolver seu próprio arsenal de mísseis para ameaçar os navios chineses”. No mesmo ano, o Japão anunciou uma atualização global da sua doutrina de segurança e anunciou planos de construção de um arsenal de mísseis hipersônicos até 2030.

Há um giro geopolítico em curso. O artigo da BBC ilustra o momento em que a bomba vem do céu e o holocausto nuclear escurece o pôr-do-sol; ele segue com a recusa japonesa à guerra, levando a crer que, hoje, se rearmar é a única opção que restou ao país. A verdade é que ao final da segunda guerra o imperador e sua burocracia foram mantidos em um esforço de preservar a unidade nacional. A oligarquia política imperial, ligada à seita restauracionista de extrema direita e que governa o país há décadas, o Nippon Kaigi, vem fazendo aproximações discretas, acompanhando ano a ano as variações da aprovação popular às políticas militaristas. Já a bomba do texto, sequer possui remetente.

A partir da bomba, o país que cometeu na Ásia atrocidades tal qual a Alemanha Nazista na Europa, passou a ser vítima. É uma posição preservada pela narrativa ocidental que possibilitou uma blindagem ao Japão. Como hoje chegou a hora de trazer novamente o Japão ao cenário geopolítico, o ocidente troca o Super Mario e Hello Kitty pelo clichê do guerreiro que rejeita a guerra, mas que se vê obrigado a guerrear.

A mistificação no texto da BBC é patente ao ponto de que na foto de capa escolhida, que mostra manifestantes nas redondezas de onde ocorreu o G7, é possível ver as inscrições: “NÃO AO G7, NÃO AO ENCONTRO IMPERIALISTA, NÃO À GUERRA NUCLEAR”. A mensagem na foto é desprezada pela redação. O que as potências nucleares ocidentais, como os EUA e Reino Unido, fazem no Ásia-Pacífico?

Não causa estranhamento o fato do Japão hospedar o seu algoz, que o ocupa militarmente há 78 anos desde quando arremessou duas bombas nucleares — as únicas na história da humanidade utilizadas em uma guerra. A mídia estatal britânica tenta vender uma ideia fictícia de que o motivo pelo qual o guerreiro está se armando novamente reside nas pressões da China contra uma ilha que está a cerca de 130 km de sua costa, blindando também o fato dos EUA estar provocando crises a 12 mil quilômetros de distância de casa.

Pessoas segurando cartazes protestam contra a próxima cúpula do Grupo dos Sete (G7) em Hiroshima, Japão, 14 de maio de 2023 (Foto: Xinhua/Yang Guang)